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Roda do Ano não é Ano!


No dia primeiro de maio celebramos, no hemisfério sul, o Tempo dos Idos (Samhain para a tradição celta) e assim completamos a Roda. A analogia com o fim de ano é inescapável, mas acaba por perverter o verdadeiro significado da Roda. Aliás, a própria expressão "Roda do Ano" já é uma carona em um conceito que não deveria ser evocado. Vejamos o por quê.

O conceito da Roda está estritamente vinculado à concepção de um tempo cíclico, um eterno recomeçar. Já deve ter ouvido isso, mas, desta vez, não se apresse, atente para o que quer dizer o verbo recomeçar, trata-se mesmo de um começar novamente, não de um "terminar um para começar outro". Observamos e queremos observar novamente as mesmas estações, os mesmos solstícios e equinócios, os mesmos sabates, os mesmos florecer e perecer dia após dia, repetindo o eterno ciclo.

O ano, ao contrário, calca-se no conceito de tempo linear. É tomada uma referência no tempo e se conta um ano, mais um ano, mais um ano, e o tempo se acumula, e jamais retorna. Assim o fazem os cristãos, os judeus e os muçulmanos, para citar as religiões com maior número de adeptos no ocidente, representando o meio em que fomos criados e, portanto, as tradições das quais tendemos a absorver conceitos mais fácil e sutilmente.

Como, entretanto, um ano gregoriano coincide com o período de uma volta completa da Terra ao redor do Sol, e esta inter-relação Terra-Sol é o que determina as estações, o número de dias de um ano é equivalente ao número de dias de uma Roda.

Será?

Não. Todos se esquecem de contar o período de interstício. A Roda termina na noite do dia trinta de abril, e só recomeça na noite do dia dois de maio. Durante este período de três dias os véus entre mortos e vivos se levantam justamente por estarmos fora do tempo, em conseqüência, fora do espaço, fora da Roda, num limbo entre universos paralelos.

Você pode não acreditar nisto em absoluto, e ignorar o período de interstício; pode acreditar e querer escapar de encontros desagradáveis, como ocorria com os antigos profanos, que esculpiam seus nabos (posteriormente substituídos por abóboras) e neles colocavam velas acesas, para projetarem bocas e olhos monstruosos que afugentassem os espíritos que estivessem vagando; pode ainda desacreditar, querer ver e não conseguir ou acreditar, querer ver e conseguir, mas quer ocorra a comunicação entre diferentes planos durante o interstício, ele faz parte do conceito de Roda que chegou até nós, e denuncia que ano e roda não coincidem nem mesmo em número de dias.

Ora, dirão alguns, o que importam três dias diante de trezentos e sessenta e cinco ou trezentos e sessenta e quatro? Os solstícios e equinócios são marcados pela posição do Sol em relação à região da Terra onde se comemora o sabate, e são estes eventos astronômicos que causam a passagem das estações e, por sua vez, a passagem das estações que causa o ciclo.

Muito bem, esqueça o interstício, se assim o desejar, mas se prestar atenção em todos os argumentos apresentados no parágrafo acima notará que no ano seguinte não haverá um novo solstício, mas o mesmo solstício, não será um novo fenômeno, um novo fato, mas a repetição do mesmo fato. O mesmo vale para os equinócios, sendo um solstício e um equinócio com tendência de dias maiores e outro solstício e equinócio com tendência de dias menores. Sempre as mesmas posições relativas, sempre os mesmos fenômenos repetidos eternamente. Então, meu caro amante de astronomia, por que acrescentaríamos um ano sobre outro se anos forem apenas registros de voltas em torno do Sol?

Não, o ano cristão, aquele tomado como referência comum, não é nada além de um aniversário, e nada tem a ver com os ciclos do Sol ou da Lua em relação à Terra, como se costuma pensar a respeito dos calendários gregoriano e juliano, respectivamente. O cristianismo, o judaísmo, o islamismo, todas estas religiões, tiveram um início e, à guisa de contagem do tempo, comemoram aniversários de eventos que lhe são caros ano após ano, representando em suas cifras a idade de suas crenças.

O que nós temos a ver com isso?

Alguns pagãos chegaram a sugerir que acrescentássemos vinte mil anos à data cristã e apresentássemos nossa própria contagem, como indicação das origens e idade de nossa própria crença. Seria justo se nos preocupássemos com o decorrer dos anos, mas o que queremos é que as estações continuem se sucedendo, ano após ano, que a Roda, a mesma velha e antiga Roda, continue girando. E isto, considerando o que vem acontecendo com o clima global em decorrência do insaciável materialismo e profundo antropocentrismo da civilização atual, não é querer pouco...

Ao invés de novas conquistas e mais acúmulo, desejo aos colegas de caldeirão um feliz recomeço no Tempo dos Idos.