ARTIGOS

O Olhar da Bruxa


Livros best-seller na cabeceira, athame na bolsa, pentagrama de prata no peito, caldeirão negro de ferro, velas coloridas e incensos, associação em coventículo, ritualização de sabates e esbates, leitura de tarô, roupinha preta por cima, um discurso ecológico e está pronto o pacote, fez-se mais uma bruxinha pret-à-porter, que vai curtir o personagem até passar pelo ritual profano da entrevista de emprego e se ver obrigada ao exercício de uma profissão capaz de sustentar dignamente a si e aos seus.

Será que ela chegou a ser realmente uma bruxa?

Ah, sim, ela foi iniciada e depois elevada até o terceiro grau, a tradição dela é Gardneriana, ou Pré-Gardneriana, o mestre é reconhecido, tem até livro publicado... O que lhe faltaria para ser considerada uma bruxa?

O Olhar, O Olhar da Bruxa.

É um olhar maroto, sedutor, ameaçador, misterioso, amoroso, suplicante, profundo, indecifrável ou o que? Por acaso ele solta centelhas?

Sim, isso tudo e muito mais. E sim, solta centelhas, mas para vê-las você teria que ter, também, O Olhar da Bruxa. Porém, isso tudo é o que vai para fora dO Olhar da Bruxa, não o que vem a dentro.

Então, o que a bruxa vê com seu Olhar?

Ah, ela vê magia onde você não vê; seres místicos onde o vento sopra, onde o Sol reflete, onde a Lua brilha; vê a teia em que os homens se perdem, bem como a linha que a tudo une; o infinito no modesto e o grandioso no sem pretensões; vê luz na escuridão e é cega aos faróis que atraem os homens como nuvens de mariposas; na solidão, se vê acompanhada, e nos grandes aglomerados humanos, identifica a loucura; vê o tempo além do tempo e o tempo fora do tempo e do espaço.

Onde os olhos dos cientistas buscam o conhecimento, O Olhar da Bruxa rastreia a sabedoria e faz aprender fora e além de livros e de práticas receitadas seja por quem for. O que invade O Olhar da Bruxa excede em muito os elementos do universo percebido pelos cientistas, e este Todo expandido além do infinito, além do espaço-tempo, se revela como mera interação entre deidades.

Diante das evidências, a detentora dO Olhar da Bruxa devora o profano e o torna sagrado, pois o espaço entre o sagrado e o profano é do tamanho exato da ignorância espiritual. Cada fato, cada coisa, cada pessoa, cada planta ou animal, cada pedra, cada som e cada chama, cada pó e cada raio de luz, cada pensamento, cada sonho e cada sentimento, cada gozo, cada sofrimento, tudo faz parte do sagrado se conseguimos olhar para lá com os olhos de uma bruxa.

E os apetrechos, a bruxa não usa? São um engodo para bruxas de butique?

Sim, ela usa, ou não. Os fabrica e, quando não pode fabricá-los, os compra quando quer, se quiser e para o que quiser. É seu Olhar que a leva aos artefatos, não são os artefatos que despertam seu Olhar. Uma bruxa não precisa participar de rituais, não precisa de athame e de roupas negras, não precisa ser reconhecida como bruxa nem esconder sua identidade, ela faz e usa o que quer, porque quer, quando quer e da forma que quer. Mas com um querer maduro que não expressa revolta nem auto-afirmação, um querer que tem origem em sua visão da Deusa.

O Olhar da Bruxa revela-se, portanto, como maior que a sociedade, mais poderoso que a própria civilização. Ao ir trabalhar num local profano, mesmo entre materialistas, sua portadora sacralizará o ambiente e, sem tentar, acabará por influenciar alguns, ao invés de renunciar a uma visão de universo infinitamente mais ampla que a dos profanos.