ARTIGOS

Revisão do Conceito de Paganismo


Virou lugar comum dizer que paganismo é a crença dos camponeses, crença da gente do campo. Este velho discurso introdutório está na boca de curiosos, de autodidatas, de membros e representantes de organizações bruxas e até mesmo nos lábios de sumo-sacerdotes/sacerdotisas bem como de representantes de tradições bruxas da atualidade. Todavia, paganismo não é crença de camponês nem mesmo em sua origem, o que dirá na atualidade...

Numa reunião aberta, curiosos, praticantes e estudiosos da bruxaria se voltam para o palestrante, que com ar enfadonho de quem declara o óbvio, como se fosse uma verdade já cristalizada e de conhecimento comum, diz: “Paganismo vem da palavra latina paganus, que significa camponês, então, paganismo é a religião dos camponeses, a religião da gente simples do campo, a religião do povo.”

Na igreja, uma senhora idosa credenciada pelo pároco ensina aos candidatos a padrinhos: “tem gente que diz que é pagão ou neopagão, mas não são coisa nenhuma. Se foram batizados, não são pagãos, não importa o que digam por aí.”

Ora, tanto wiccanos quanto cristãos podem compreender e usar as palavras pagão e paganismo com os sentidos que bem entenderem, conforme lhes seja útil, mas, sem sombra de dúvida, estes significados foram adquiridos por derivação, estando muito distantes do significado original. Ao menos para nós bruxos tradicionais, vale a pena retomar o sentido original da palavra pagão. Quem sabe os wiccanos também chegam à mesma conclusão após ler este texto...

Paganismo vem sim da palavra latina paganus, mas podemos traduzi-la melhor como aldeão do que como camponês. Na época do Império Romano, aldeão e camponês eram conceitos praticamente indistintos, as aldeias ficavam no campo e as crenças presentes nos poucos centros urbanos eram inspiradas na cultura romana ou grega, pouco tendo a ver com a cultura do povo local. Prosperava quem se integrasse ao modus vivendi romano. Hoje, aldeão é quem mora num pequeno centro urbano, mas ainda assim um centro legitimamente urbano; e camponês, quem mora no campo.

Ainda assim, paganismo não é a cultura de quem mora ou morava em pequenos centros urbanos. Para compreender isso, precisamos recuar mais no tempo e analisar a palavra grega para pagão.

Em grego, lingua mãe do latim, pagão é xênos, que também significa estrangeiro.

Nada mais lógico para o contexto, pois o paganismo seria a crença do estrangeiro.

Mas que estrangeiro seria este?

Não o cristão, pois o cristianismo ainda não existia; não o muçulmano, pois o islamismo ainda não existia. O que havia era a religião de cada local, a religião da terra do estrangeiro.

Muito lógico para uma época pré messiânica, em que a religião era uma expressão cultural de um povo. Assim era com os judeus, assim era com cada cidade do Egito antigo mesmo após a unificação, mesmo após a invasão árabe e ainda durante a dinastia Ptolemaica, e assim foi com os povos conquistados pelo Império Romano até a conversão compulsória ao cristianismo.

Paganus vem de pagus, e pagus significa terra. Terra não no sentido de área rural, como já ouvi alguns dizerem, mas no de espaço geográfico, o que é plenamente coerente com o conceito grego de pagão.

Para os romanos, como conquistadores do mundo de sua época (ignoravam os orientais, os autóctones americanos e a maior parte dos africanos subsaarianos), pagão era aquele que mantinha a religiosidade típica da região conquistada, não adotando os Deuses romanos (posteriormente o cristianismo), ou seja, paganismo era nada mais que a religião do povo local.

Considerar o paganismo como a religião da gente simples do povo é, portanto, mais do que um embaraço com as palavras, é um erro que traz o risco de ignorar um dos fundamentos mais universais do paganismo: o respeito às especificidades locais da religiosidade, o espírito da terra que fala através de seus habitantes.

Paganismo, para nós bruxos ancestrais, assim como para os antigos romanos, é o conjunto de crenças locais, a forma de religiosidade autêntica encontrada em cada grupo cultural. Ele pode ter um eixo comum a quase todas suas expressões, mas buscar incutir uma só forma de expressão a diversos povos e regiões é a mera reprodução do que fizeram/fazem o cristianismo e o islamismo, nada além de aculturação.